FIDELIDADE A SI MESMO


Alexandre Jollien

“No caminho da vida espiritual, detecto outro perigo: querer brincar de super herói, pretender ter superado as feridas. Talvez não seja inútil recordar as palavras de Nietzsche: “ É preciso ter o caos em si para dar à luz uma estrela cintilante”. Sem permanecer na contradição, é bom ver que nossas feridas também podem se tornar um importante lugar de fecundidade. O desafio lançado por Nietzsche certamente libera: não olhar mais as feridas do passado com desdém e se exercitar para encontrar a cada instante uma chance de progredir.

Tentar um  pouco de coerência também é fazer uma faxina, abandonar os preconceitos como quem se desfaz de roupas muito gastas. E que tal começarmos encurralando a saudade que nos amarra a erros cem vezes cometidos? Apegar-se ao passado, fazer de alguma coisa provisória algo absoluto, reaviva o mal-estar. Aqui na Terra tudo é efêmero, impermanente, até o ensinamento de Buda, como dizem os textos, essa jangada que nos leva à outra margem. A vida é crivada de etapas. 
No caminho, devemos abandonar muitos reflexos, preconceitos essas idéias purgativos que nos sustentam por algum tempo, mas acabam infernizando a existência. Antes de dormir, às vezes examino as opiniões a que estou amarrado. Para que carregar toda essa tralha?  Sem me desfazer de tudo, desde já posso ver que a maioria dos meus pensamentos procede de uma ilusão.

Aliás, ao frequentar os mestres, o que mais me surpreendeu é que nunca identifiquei neles o menor desejo de agradar. Do coração deles irradiam uma profunda adequação ao real e um    amor incondicional por cada pessoa. Ao mesmo tempo, as feridas podem nos transformar em  mendigos ávidos por afeto, prestes a tudo para serem consolados. Se não é pela violência que se mata o ego, mas pela ternura, então devemos acolher sem severidade nossos paradoxos.
Trata-se de uma etapa que nos aproxima da coerência, essa fidelidade àquilo que há de mais profundo em nós. E, em vez de a cada instante apontar para o mais ínfimo passo em falso do outro, podemos nos alimentar do amor incondicional”.

Do livro: “O caminho da Sabedoria – Conversas entre um monge, um filósofo e um psiquiatra sobre a arte de viver”. Alexandre Jollien, Matthieu Ricard e Christophe André
Editora Alaúde, SP.

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